domingo, 15 de março de 2015

BARACTERES * Antonio Cabral Filho - RJ

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-rgfuol-
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 BARACTERES      
                    "Conto"


Sabe aqueles seres-zinhos que vivem em seus reinosinhos, reinos subterrâneos, lá das profundezas, reinos frios e muito escuros, reinos de porão, de frinchas, monturos...sabe,,,,,,,,,,,? Esses seres, eu os chamo de baratas; conheces?
   Esses seres, naquelas horas de profundo silêncio e solidão que tomam conta de nossas casas quando estamos dormindo ou fomos às compras, visitam o que eles consideram o reino dos humanos e até ficam impressionados com o nosso habitat, todo compartimentado em quarto, sala, cozinha, banheiro, varanda, terraço etc, ao contrário dos seus. Os nossos aposentos, então, sempre rescendendo a essências orientais, lhes recordam antigos castelos imperiais, onde somente os soberanos e seus camareiros poderiam pôr os pés. Nossas cozinhas lotadas de pratarias, tudo sempre muito brilhante, lhes causam certa irritação devido a tanta claridade, à qual eles não podem se acostumar por não haver luz lá nos seus reinos trevosos. São nessas horas que eles correm ao latão de lixo e aí se entocam, esquecem-se da vida, vasculhando à procura de algum resto de guloseima, que normalmente, desperdiçamos. Se encontram, ah, que felicidade!
  
É aí que geralmente eles demoram mais em suas visitas às nossas residências. Daí, não ser raro chegarmos em casa e notarmos uns barulhinhos no latão de lixo. É que eles ficam desesperados por serem pegos em plena invasão de reinos alheios, ao contrário de certos povos nórdicos, por um lado, e por outro, por findar o seu passeio, a sua incursão no mundo maravilhoso dos humanos.

Mas não se assuste. As baratas têm mesmo um senso um tanto parecido com o de certas pessoas; alguém já deve ter notado isso. Acredito que alguém já chegou em casa e encontrou uma barata completamente  à vontade sobre o seu sofá, vendo tranquilamente aquela fita que foi pega para agradar a uma visita, ou, se for um pouco mais modesta, estará assistindo a sua tv, ou ainda, ouvindo som sonolentamente despreocupada, com os pés sobre as almofadas.
- Não parece aquela visita que chegou e se abancou em sua casa?

Mas fique tranquilo. Esses seres são assim mesmo. Após belas refeições em que se refestelam de guloseimas do nosso lixo, elas adoram fazer a sesta em nossas salas, passear em nossas cortinas, rolar em nossos tapetes, admirar embevecidamente a nossa decoração, verificar se o som e os discos são de última geração, se os filmes são recentes, para que elas possam vir naquelas horas de relax, com toda a sua cambada, sorrateiramente pelos cantinhos das paredes, ouvir algumas músicas ou ver aquela fita que está fazendo o maior sucesso.

Posso estar enganado, mas juro que conheço alguém assim...Se o prezado leitor estiver ouvindo "Mulher Pequena", pode ter certeza, elas estão em sua companhia, entocadinhas, embaixo ou dentro do sofá, ou dos aparelhos da sala, todas suspirosas, com os olhinhos semifechados e trêmulas de emoção, principalmente quando o Rei diz " Fica na ponta dos pés, pra ganhar beijo na boca"; é o "up!" de máximo, elas vão ao delírio! Ou então nos horários nobres, daqueles programas de tv que dão muita audiência, elas adoram assistir juntinhas conosco.

Pode acreditar em mim. Um dia desses eu ouvi uma vozinha de fada vindo da direção da poltrona dizendo "Olha lá, a mana Hebe!" Confesso, eu fiquei meio preocupado, sabe como é que é, de vez em quando a gente excede, bebe uma a mais, mas é que a tv estava ligada  no Programa da Hebe; aí eu fiquei tranquilo.

Outra coisa que elas adoram é assistir novelas ou então aqueles filmes sensacionalistas, mas sensacionalistas mesmo, o suficiente para que elas possam rir, mas rir mesmo, rir de rachar, de nós,por não acharem "graça" em tanta asneira, quando se recolhem às profundezas dos seus reinos subterrâneos, lá nos porões, frinchas ou monturos, nas suas horas de candinhas.

E não são poucas as vezes em que elas saem felizes da vida  de nossas casa e vão bater pernas pelas redondezas, rua afora como aquelas vizinhas que  só eu conheço, que vão rápidas e faceiras ao encontro das coleguinhas pra fofocarem um pouco. Quando elas se juntam, metem o pau na nossa comida, no nosso doce, no nosso queijo, dizem que no nosso lixo não tem nada que preste, sequer uma iguariazinha francesa e ainda nos xingam:
- Gentinha miserável!

E, logo em seguida, vão revirar os bueiros, os canos d'água da pia, e de súbito, saem em louca disparada uma atrás da outra, que até lembra a corrida da São Silvestre. É que elas descobriram a caixa de gordura, esse reservatório de maravilhas da gulodice humana.  Novamente a insanidade toma conta delas e sai "todomundo" na porrada, para passar pelo suspiro da tampa ao mesmo tempo. Mas no momento em que elas entravam "pelo cano", eu me lembrei de relance das torcidas organizadas em épocas de campeonatos: Tem muita diferença?

Mas é justamente aí aonde elas podem encontrar deliciosas sobremesas, tais como frutas e doces mal digeridos para deitarem o cabelo nas comilanças do maravilhoso mundo humano.

E isso ainda é pouco. Há alguns dias uma baratinha, dessas de armário de cozinha, muito esnobe e chechelenta, descobriu que já estava cansada das delícias encontradas em nossas pias, latas de lixo, fogões sujos, e decidiu fazer uma tournê pelas residências chiques  da nossa vizinhança, ir às ruas sassaricar suas perninhas secas pelas calçadas revestidas de pedras portuguesas, em busca de novidades pra contar às suas coleguinhas das frinchas do sofá da casa do vizinho. Mal pôs-se à rua,  quase foi esmagada pelos sapatos anabela de uma madame chiquérrima, dessas bem educadas que caminham sem fazer barulho com os sapatos e higiênica o bastante para levar o seu lixo, devidamente ensacado, e colocá-lo na coletora em frente ao edifício, para que o primeiro gari que apareça possa levá-lo para o mais longe possível.  Não conseguiu segui-la de perto, mas ainda assim procurou manter uma distância que lhe desse alguma vantagem caso pintasse outra barata na parada.  Mas ela bobeou e não notou um grupo, não de baratas, mas de humano, a meia distância da coletora, cada um na sua, fingindo que não tava nem aí. Quando a madame largou a sacola de lixo na coletora, foi o maior saque,  um empurra-empurra medonho, que a baratinha não entendeu nada.  Porém, logo-logo, sacou o lance: Um deles levou uns bifes meio estragados, outro uma lata de compota de figo mofada, um terceiro arrastou um queijo inteirinho coberto de bichos, pronto para ser devorado com vinho.  Contudo, o que mais lhe assustou foi o que aconteceu a um quarto humano.  No lusco-fusco lá entre eles, ao redor da coletora, um deles levou um tombo e quase caiu sobre a baratinha, o que só não aconteceu porque ela foi mais rápida e se livrou da infelicidade de ser esmagada por um humano, por que chegou um pouco mais para debaixo do pneu de um carro . Aí ela pôs-se a pensar e ficou baratinada, sem conseguir entender mais nada, sem conseguir arrumar  suas ideias. Será possível, perguntou aos seus botões, os humanos disputando o lixo dos latões igualzinho a nós, baratas?¹ Isso é uma injustiça! Concluiu e voltou voando pra contar essa ignomínia a todo o seu submundo. 
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domingo, 8 de março de 2015

Coisas Do Arco Da Velha * Antonio Cabral Filho - RJ

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COISAS DO ARCO DA VELHA

- Os etês gostam de bunda. Foi o que captei da conversa entre as meninas, enquanto caminhava no calçadão do Liceu.
- Tem caras que não gostam, né; acho que não são chegados; comer um cuzinho será que não faz bem?!
- Cruz credo! Exclamei mentalmente, e segui meu caminho rumo ao Fórum, que fica em frente.
Elas vieram na minha direção, a passos firmes, olhar direto, "você tem fogo...", perguntou a morena pele-de-cuia, "e como tem", observou a loira de olhos azuis, típica europeia, me examinando de cima a baixo, parando os olhos, ostensivamente, na minha barriguilha; "te vejo sempre por aqui", disse a morena, enquanto eu lhe entregava o isqueiro; "é, estou sempre na cantina, tomando café; café de Fórum é choco, frio, fraco, e causa-me asia; então, venho na cantina, às vezes comer alguma coisa", concluí.
- Uma bucetinha, um cuzinho e o que mais? Indagou a loura, acendendo o cigarro.
- Você está sempre cercado de meninas! Não é à toa!! Vai ver é o maior safadão, pica doce.... Completou a morena, sempre combinando seus ataques com a colega.

O Liceu é uma escola destinada à classe média alta, concebida nos tempos do império, onde só entravam filhinhos de papai e seus apadrinhados do aparelho de estado. Mas isso dançou com o advento da república, e hoje, assim como os "Pedro II", recebem qualquer um, desde que aguentem suas provas de avaliação, pois ainda são um padrão de ensino almejado pelas camadas interessadas em ascensão social e tecnica. Seus prédios são construções coloniais, com arquitetura rebuscada, estilosos; janelões de madeira nobre, ainda insensíveis ao cupim. Uma coisa fantástica em termos de concepção, pois possuem salas espaçosas, bem arejadas, lousas imensas, mesas de cedro vernisadas, cheias de gavetas; seus corredores lembram aqueles do filme Harry Potter, sinistros de arrepiar. E no caso do Liceu Nilo Peçanha, de Niterói, Rio de Janeiro, tem um sótão, que seguramente foi planejado como adega, pois tem balcãozinho cheio de compartimentos para copos, taças e talheres, à frente de um espelho na parede em moldura de mogno  e uma silhueta vitoriana; além de um velho barril de carvalho, aonde, sem dúvida, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Lima Barreto e tantas outras celebridades literárias desta terra de orfandades iniciaram-se nos caminhos da radicalidade estética.

- Conhece o sótão do Liceu? Indagou a morena, quase ao pé do meu ouvido.
- É ideal para uma brincadinha... Insinuou ela. Respondi que lá eu já namorei, me embriaguei, estudei e fiz muita reunião do grêmio.
- Então é "liceano... Vamos!" Disseram ambas, quase em uníssono. 
No rádio da cantina, exatamente às dez da manhã no meu Rolex, tocava uma canção, cujo trecho diz assim:" Deixa isso pra lá, vem pra cá, venha ver. Eu não tô fazendo nada, nem você também..." e seguia insinuando outras coisas, ditas pela voz de um dos meus tantos ídolos da mpb, Jair Rodrigues.

Bom, pra encurtar o lererê, a morena está aqui em casa há 32 anos. Já somos avós, e, nem os filhos nem os netos jamais saberão das nossas façanhas e quando lhe mostrei o rascunho deste texto, ela fitou-me com seu olhar fogueando e objetou: você não pôr aí os detalhes...
- Claro que não!! São nossas relíquias!
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domingo, 1 de março de 2015

História De Lurdinhas - Antonio Cabral Filho - RJ

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     Não sei por que razão a "máquina" de Tenório Cavalcante chamava-se Lurdinha. Sei, apenas, que se tratava de uma metralhadora de marca Ina e com ela ele "escreveu" sua história, cobrindo de sangue a Baixada Fluminense.

     A minha Máquina, também, chama-se Lurdinha, mas tem as "mãos limpas" e por uma razão muito justa. É que com ela eu escrevo a minha história e derramo o meu próprio sangue, só que em sentido figurado, é claro.
     É que quando cansei-me da rotatividade no mercado de trabalho, uma das primeiras coisas que fiz foi vender livro nas portas das faculdades do Rio de Janeiro. Isso rendeu-me muita amizade, uma das quais com uma estudante de geografia da Universidade Federal Fluminense - UFF, que levava sua Olivetti portátil para o campus, visando preparar seus trabalhos urgentemente e entregá-los aos professores.
     Como era cansativo carregá-la o tempo todo, ela ficava comigo no saguão do Instituto de Matemática, aonde Lurdinha e seus colegas de turmas se reuniam para preparar os trabalhos.
     O tempo passou de fininho e Lurdinha concluiu geografia, ingressou em pedagogia e a máquina foi ficando comigo. E, graças a isso, acabei "datilografo" ( a quatro dedos, é verdade), oficial da galera, o que contribuiu para gerar alguns dividendos elaborando trabalhos para muita gente.
     Sem ao menos dar por mim, o ano se passava e lá vinha outra leva de calouros com aquela festança, a cara de espanto dos novatos, os trotes, um choro aqui, um namoro ali e o ombro amigo do velho livreiro para guardar os segredinhos da meninada.
     Um dia Lurdinha chegou com um monte de livros e pôs do meu lado...
- É teu!
- Mas... Gaguejei, e, ao notar que eram seus livros de consulta, todos comprados comigo, notei que ela dobrava uma jaqueta jeans, que há um monte de meses não saía da minha cadeira.
- Vai, finalmente, dar uma lavada na pobre, né! Ironizei-a.
- Não! Estou indo para a UFMG; vou morar em frente à Pampulha; até já dei uma volta na lagoa. Adiantou ela, irradiando felicidade.
- E a faculdade? Interroguei, assustado.
- Aqui o diploma! Mostrou-o sorridente, enquanto ajustava a mochila.
     Lurdinha é clarinha, de pele rosada, tem cabelos castanhos lisos, que ela corta à chanel, o que realça seu rosto redondo; seus olhos são esverdeados e mudam de côr ao mínimo reflexo da luz, tem estatura mediana e um corpo que nós, os machos, chamamos de "miñon".
- Tá-qui a máquina! E coloquei-a ao lado a mochila, já cheia de tralhas amarradas por fora.
- Tem ficha de telefone? Viajo hoje à noite  e até lá, quero me despedir de alguns colegas. E continuou falando um monte de coisas, enquanto eu amarrava uma linha com quinze centímetros mais ou menos na única ficha que eu tinha em um palito para que ela pudesse ligar sem perder a ficha.
- P....!! É claro que ela disse uma coisa que não cabe aqui.
- Você é um guerrilheiro! 
- Que isso, companheira! Beijou-me, abraçou-me, e foi saindo com a mochila na mão.
- E a máquina?! E ela voltou-se e disse:
- Eu a trouxe pra cá para bater trabalhos meus e defender um "qualquer" com os trabalhos dos colegas, mas ela virou um "ganha-pão" pra nós dois. Eu não tenho condições de tirá-la de você. Disse isso e virou-se com sua rodadinha característica, deixando-me sentado com a máquina no colo entre as mãos.
- Não é justo que ela se chame Lurdinha?!
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