domingo, 22 de fevereiro de 2015

MURMURROS - Conto Sobre Cadeia * Antonio Cabral Filho - RJ

http://consistencia.org/como-fugir-da-cadeia 
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MURMURROS

Já escutava aquele barulho há dias. Era um barulho contínuo, como o som de um trovão prolongado. Colei então o ouvido à parede em busca de melhor acuidade sonora e, só pude convencer-me de que não mudava a intensidade.

Seguramente, não eram socos nem gemidos. Não era ruído de britadeira, nem de trator. Nem motor de carro parado. Nem barulho de compressor. Passaram-se dias, sem que aquele barulho parasse ou mudasse aquela intensidade monocórdica.

Inúteis minhas perguntas ao carcereiro sobre o que havia no compartimento ao lado da minha cela. A cada interrogação feita, o carcereiro de plantão reagia de forma cada vez mais assustada, a ponto de chamar  o "pisiquiatra" do presídio, que após longa sessão de análise, comigo deitado sobre o catre que eu usava como cama, saiu profundamente deprimido com a minha situação e sem condições de emitir o seu diagnóstico.

A partir daquele momento, eu tive a leve impressão de que  estava exposto à visitação pública, tal a quantidade de pessoas que vinham observar-me atrás das grades, cada uma esboçando reações as mais estapafúrdias. Algumas se punham a escrever, outras a ouvirem uns barulhinhos vindos de umas caixinhas de música encostadas ao ouvido; outras ainda se soltavam a cantar, dançar, a tal ponto que a segurança do presídio resolveu se reunir  para encontrar uma solução. 
- Resolveram acabar com a brincadeira. Foi o que consegui captar da conversa entre dois guardas, sempre prostrados a dois metros da minha cela.

A partir daí, convenci-me de ter me tornado incomunicável,ou seja, eu passara a ser um preso de alta periculosidade, sobretudo pelos olhares a mim emitidos, fosse pelos carcereiros, guardas ou até comandantes militares, que se plantavam frente ao portão, sempre escrevendo e passando comunicados pelo rádio instalado em um jipe militar, de onde não arredavam pé.

Mas houve um dia em que não apareceu ninguém. E o carcereiro chegou assoviando, o guarda de plantão leu um jornal inteiro, e, insolitamente, deixou-o cair bem perto do portão, indo embora a seguir. 

Seco por uma notícia do mundo lá fora, como eu estava, corri o risco de ganhar uma sessão de pau-de-arara ou levar um caldo, mas arrastei-o como um gato que toma o brinquedo do outro e pus-me a examinar em que direção  o guarda tinha ido. Não o vi mais. Aliás, nunca mais. Voltei-me então para o jornal. O vento soprava tranquilamente, brincando com as folhas secas do pátio, vindas não sei de onde, uma vez que ali, no campo visual à minha frente, não haviam árvores. 

Os olhos corriam o jornal avidamente, até que esbarraram num COMUNICADO do Ministério da Defesa, avisando que o PRISIONEIRO X se encontrava
 incomunicável por tempo indeterminado, e, mais abaixo, uma nota registrando o DESAPARECIMENTO de Olinto dos Santos, 31 anos, brasileiro, casado, residente à Rua Almirante Bournier, 171, centro; "Quem o vir ou tiver notícias, favor comunicar-se com Maria dos Anjos, no referido endereço. A família agradece." Joguei o jornal de lado. Afinal,  qual a graça de fatos tão idiotas? Comunicados militares, gente desaparecida, eu hein! 

O sol já se ia batendo em retirada, e a penumbra começava o seu reinado ao longo do pátio e logo ocuparia os cantos de minha cela a fazer-me companhia até ao dia seguinte. Então, só me restaria esperar a noite chegar para eu trocar ideias com ela, o vento e as sombras, ora delgadas ora desengonçadas, como um general de reserva.

Alguns dias sem guardas, sem carcereiros mal humorados, avaliei que havia mudado a minha situação. Parecia que estavam sendo "bonzinhos" comigo. Primeiro, foi o jornal, o carcereiro descontraído, depois a suspensão do guarda no portão da cela, e agora, sobremesa no almoço, no jantar, lanche às 21 horas; eu hein!...

Mas durou pouco. Nem uma semana, e chegaram três oficiais e um guarda à porta da cela, e um deles afirmou, meio sizudo e sem ninguém lhe perguntar: É esse aí! Disse apontando para mim, visivelmente nervoso. Um outro, de olhar perscrutativo, disse"Abre!", sem tirar os olhos de mim. Os oficiais entraram na cela e o guarda ficou na porta, de metralhadora em punho, descontrolado a tal ponto que até a arma tremia. Um dos oficiais perguntou-me, em tom irônico: "X, você conhece a ante-sala do inferno?" Sem entender nada, olhei-os todos, de cima a baixo, um a um, detidamente, e lembrei-me do jornal: O "desaparecido" era eu.
- Cuidado, ele é perigoso! Gritou o guarda empunhando a metralhadora, ao que todos anuiram e foram se retirando de costas, devagarzinho. Mas o mais forte deles, meio barrigudo, branco e de bigode, disse pra mim, com a voz cheia de sulismos:
- Você está nela!! E se foram. Eu continuei ali, preso. Sem entender nada. 

Mas um silêncio de pedra tomou conta de tudo, por dias a fio. Não apareceu mais guardas, nem carcereiros, nem militares nervosos, nada. Só que deixaram o portão aberto, sem cadeado e até a corrente levaram. Porém, temendo fuzilamento por "fuga simulada", fiquei mais atento ainda. Dormia o mínimo, pelo risco de não acordar. Foi assim, até aventurar-me a abrir o portão e olhar para o lado de fora e constatar, surpreso, que eu estava largado pra trás, que o quartel fora abandonado e todos se foram...
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sábado, 21 de fevereiro de 2015

Da Arte De Torturar Crianças * Antonio Cabral Filho - RJ

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Dia desses eu atravessei a cidade, fui lá pros confins da zona oeste, na casa de um amigo, fechar uns textos que tínhamos de encaixar numas publicações. 
É que esse negócio de e-mail prá lá e-mail pra cá não funciona. 
Saltei do ônibus e lá estava ele no ponto encostado na sua Harley Davidson, de estimação. Engarupei-me e partimos pelo baixadão de Raíz da Serra. O desconforto era imenso. Não suporto andar de moto, inda mais na garupa. Ao chegar em sua casa, notei que estávamos tensos, fosse pelas responsabilidades ou pelo trajeto desagradável.
 Sem querer aporrinhar, pedi-lhe um copo d'água, e ele trouxe uma garrafa com dois copos e sentamos à mesa da sala. Ele pegou seu notebook, eu abri o meu e liguei e fomos corrigindo textos, acertando frases e períodos; plantando massetes aqui,  ali expressões jornalísticas, alguma gíria linguística, e, às vezes ríamos, porque sabemos que isso vai dar lenha; neguinho vai ter que ir ao "burronário" pra decifrar um pouco, pouco apenas, porque tudo não dá...Estamos matando à unha.
Suas crianças, três, um menino e duas meninas, se encastelaram na mesa; cada uma com seu  " ai...bolso!"; é claro que atrapalha. Ele já está irritado com elas, pois manda sair, ir para os seus quartos, para a varanda, para o quintal, mas elas repicam que "eu sou muito legal" e querem saber se eu vou contar história pra elas hoje. É tio Cabral pra lá e tio Cabral pra cá...Não tem jeito! Mas ele resolve pôr o menino de castigo; tem 4 anos, é muito esperto, "brinca" com um computador! 
Ele foi para o quarto chorando, prometendo que vai esperar para o Tio Cablal lhe contar história, o que asseguro fazer. Enquanto isso, eu e J, como vou apresentar meu colega, uma vez que se trata de gente real e não ficção, comparamos textos nossos com textos de Carlos Heitor Cony e Luiz  Fernando Veríssimo, procurando tirar uma casquinha nos papas da crônica. Mas eis que de repente começamos a ouvir uma voz tipo Mônica....mããe, a senhola qué mãe de Jesus, me adiuda, a senhola pode, é mãe de Jesuus, fala com meu pai pla eu blincar com mias ilmãs lá na valanda, diiii pla ele que noão agluento ficá pleso no esculo...vai! Eu olo pla senhola todo dia....
 Ao ouvir isso, J não aguentou e foi rápido para o quarto do menino, pegou-o nos braços e pediu desculpa, enquanto ele agradecia a Nossa Senhora dizendo " a senhola é lápida hein! Eu vou olá mais! Obligado!!" e beijou o pai, que caiu no pranto.
J, assim como eu, somos de raíz católica, temos nossos lares cheios de símbolos de nossa formação religiosa; Cristo na cruz, esculturas de igrejas barrocas, Santo Antonio, São Jorge, São Francisco de Assis e, impreterivelmente, imagens de Nossa Senhora pela casa toda. É o caso do quarto do menino dele, que ostenta um quadro da Virgem vindo de sua Avó, Dona Olinda, descendente de italianos franciscaníssimos. É aos pés Dela que ele reúne-se com esposa e filhos para orar ao fim dos seus dias. E é por isso que o pequeno P sabe se dirigir à Santa.
Mas, conclusão: Ele, como torturador, não faturaria nem um café!
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domingo, 15 de fevereiro de 2015

Fábula Orwelliana * Antonio Cabral Filho - RJ

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ANTONIO CABRAL FILHO, com o livro
ANTOLOGIA POÉTICA VOL2 UFF -
Universidade Federal Fluminense, 1996.
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Durante a minha infância, vivi na roça. E, não sei se você sabe, mas na roça há o costume de não se construir o banheiro dentro de casa, da residência, ou seja, ergue-se um cômodo a uma certa distância da casa que é apelidado de "casinha", e aí fura-se um buraco no canto, que é onde se defeca e esvazia os pinicos ao amanhecer, tomar banho e guardar aquela roupa de trabalho a ser usada no dia seguinte.

Ocorre que as crianças, geralmente, evitam a "casinha" devido à catinga e vão cagar no mato.  Como na maioria das casas criam-se porcos soltos, eles se habituam a comer as fezes humanas, e percebem, com muita perícia, aonde tem um cagão atrás da moita, dando, logo-logo, um fim à paz do coitado, que é obrigado a sair correndo para evitar a voracidade do porco por merda.

Quando o porco se satisfaz com a titica encontrada, ótimo! Mas na maioria das vezes,  o porco quer mais merda. Nesses casos, o sujeito tem de se lavar para tirar o cheiro que o identifica para o porco.

Durante a minha vida adulta tenho observado nos ambientes que frequento, seja de trabalho ou não, que as características daqueles porcos da minha infância fazem parte da personalidade de certo tipo de pessoas. Geralmente, elas trabalham em funções de controle, chefias, segurança, administração ou são essencialmente fofoqueiras, me parecem os "Indiana Jones da Bosta Perdida!" etc. E percebo, até com certa tristeza, que uma das características marcantes do ser humano, é fazer merda.
De modo que quando noto alguém em vias de cometer um "deslize" que vai provocar a gana, a "repressão" dos digamos assim "superiores", eu me apresso em abordá-lo e expor-lhe esses fatos lá da minha infância, no intuito de alertá-los para a sanha dos porcos e até já criei um lema:

NÃO DÊ MOLE PARA OS PORCOS
PORQUE ELES ADORAM MERDA!
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sábado, 14 de fevereiro de 2015

SOBRESSALTO - MiniConto* Antonio Cabral Filho - RJ

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SOBRESSALTO

- conto -

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ANTONIO CABRAL FILHO, com o livro
POETAS EN/CENA 6 - Org Rogério Salgado/Virgilene Araujo,
BELÔ POÉTICO 2012.
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Como os últimos momentos são tão iguais, que quando surgem causam sobressaltos, aquele não foi diferente.
     Eu estava com os olhos protegidos contra a poluição contextual; por isso, tive de ativar a visão para acreditar e aguçar a memória para ver o moço, tão sobressaltado quanto eu, sentado ao meu lado no coletivo, que tirava cigarros do maço, acendia-os, fumava até à metade e jogava as cinzas e as baganas no piso do carro, entre nós dois.
     Mexia-se inquieto, cruzava e descruzava braços e pernas, nas pausas entre um cigarro e outro.
     Quando restava o último, acendeu-o, cruzou as pernas e acomodou como quis o braço desocupado sobre o joelho, enquanto chamineava cinzentas baforadas de fumaça, ansioso e exausto.
     De repente, atirou o cigarro no chão, e se levantou irritado, dirigindo-se a mim:
- Quê que há meu chapa?! Por que está me prestando atenção?! 
     Como os últimos momentos são tão iguais que quando surgem causam sobressaltos, fiquei sobressaltado e disse-lhe que finalmente arrancara uma palavra de alguém, pois uma troca de ideias hoje em dia, é coisa de paranóico mesmo. 
     Em seguida, nós dois, sobressaltados um com o outro, saltamos do ônibus e sumimos, correndo em direções contrárias.

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