domingo, 15 de março de 2015

BARACTERES * Antonio Cabral Filho - RJ

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 BARACTERES      
                    "Conto"


Sabe aqueles seres-zinhos que vivem em seus reinosinhos, reinos subterrâneos, lá das profundezas, reinos frios e muito escuros, reinos de porão, de frinchas, monturos...sabe,,,,,,,,,,,? Esses seres, eu os chamo de baratas; conheces?
   Esses seres, naquelas horas de profundo silêncio e solidão que tomam conta de nossas casas quando estamos dormindo ou fomos às compras, visitam o que eles consideram o reino dos humanos e até ficam impressionados com o nosso habitat, todo compartimentado em quarto, sala, cozinha, banheiro, varanda, terraço etc, ao contrário dos seus. Os nossos aposentos, então, sempre rescendendo a essências orientais, lhes recordam antigos castelos imperiais, onde somente os soberanos e seus camareiros poderiam pôr os pés. Nossas cozinhas lotadas de pratarias, tudo sempre muito brilhante, lhes causam certa irritação devido a tanta claridade, à qual eles não podem se acostumar por não haver luz lá nos seus reinos trevosos. São nessas horas que eles correm ao latão de lixo e aí se entocam, esquecem-se da vida, vasculhando à procura de algum resto de guloseima, que normalmente, desperdiçamos. Se encontram, ah, que felicidade!
  
É aí que geralmente eles demoram mais em suas visitas às nossas residências. Daí, não ser raro chegarmos em casa e notarmos uns barulhinhos no latão de lixo. É que eles ficam desesperados por serem pegos em plena invasão de reinos alheios, ao contrário de certos povos nórdicos, por um lado, e por outro, por findar o seu passeio, a sua incursão no mundo maravilhoso dos humanos.

Mas não se assuste. As baratas têm mesmo um senso um tanto parecido com o de certas pessoas; alguém já deve ter notado isso. Acredito que alguém já chegou em casa e encontrou uma barata completamente  à vontade sobre o seu sofá, vendo tranquilamente aquela fita que foi pega para agradar a uma visita, ou, se for um pouco mais modesta, estará assistindo a sua tv, ou ainda, ouvindo som sonolentamente despreocupada, com os pés sobre as almofadas.
- Não parece aquela visita que chegou e se abancou em sua casa?

Mas fique tranquilo. Esses seres são assim mesmo. Após belas refeições em que se refestelam de guloseimas do nosso lixo, elas adoram fazer a sesta em nossas salas, passear em nossas cortinas, rolar em nossos tapetes, admirar embevecidamente a nossa decoração, verificar se o som e os discos são de última geração, se os filmes são recentes, para que elas possam vir naquelas horas de relax, com toda a sua cambada, sorrateiramente pelos cantinhos das paredes, ouvir algumas músicas ou ver aquela fita que está fazendo o maior sucesso.

Posso estar enganado, mas juro que conheço alguém assim...Se o prezado leitor estiver ouvindo "Mulher Pequena", pode ter certeza, elas estão em sua companhia, entocadinhas, embaixo ou dentro do sofá, ou dos aparelhos da sala, todas suspirosas, com os olhinhos semifechados e trêmulas de emoção, principalmente quando o Rei diz " Fica na ponta dos pés, pra ganhar beijo na boca"; é o "up!" de máximo, elas vão ao delírio! Ou então nos horários nobres, daqueles programas de tv que dão muita audiência, elas adoram assistir juntinhas conosco.

Pode acreditar em mim. Um dia desses eu ouvi uma vozinha de fada vindo da direção da poltrona dizendo "Olha lá, a mana Hebe!" Confesso, eu fiquei meio preocupado, sabe como é que é, de vez em quando a gente excede, bebe uma a mais, mas é que a tv estava ligada  no Programa da Hebe; aí eu fiquei tranquilo.

Outra coisa que elas adoram é assistir novelas ou então aqueles filmes sensacionalistas, mas sensacionalistas mesmo, o suficiente para que elas possam rir, mas rir mesmo, rir de rachar, de nós,por não acharem "graça" em tanta asneira, quando se recolhem às profundezas dos seus reinos subterrâneos, lá nos porões, frinchas ou monturos, nas suas horas de candinhas.

E não são poucas as vezes em que elas saem felizes da vida  de nossas casa e vão bater pernas pelas redondezas, rua afora como aquelas vizinhas que  só eu conheço, que vão rápidas e faceiras ao encontro das coleguinhas pra fofocarem um pouco. Quando elas se juntam, metem o pau na nossa comida, no nosso doce, no nosso queijo, dizem que no nosso lixo não tem nada que preste, sequer uma iguariazinha francesa e ainda nos xingam:
- Gentinha miserável!

E, logo em seguida, vão revirar os bueiros, os canos d'água da pia, e de súbito, saem em louca disparada uma atrás da outra, que até lembra a corrida da São Silvestre. É que elas descobriram a caixa de gordura, esse reservatório de maravilhas da gulodice humana.  Novamente a insanidade toma conta delas e sai "todomundo" na porrada, para passar pelo suspiro da tampa ao mesmo tempo. Mas no momento em que elas entravam "pelo cano", eu me lembrei de relance das torcidas organizadas em épocas de campeonatos: Tem muita diferença?

Mas é justamente aí aonde elas podem encontrar deliciosas sobremesas, tais como frutas e doces mal digeridos para deitarem o cabelo nas comilanças do maravilhoso mundo humano.

E isso ainda é pouco. Há alguns dias uma baratinha, dessas de armário de cozinha, muito esnobe e chechelenta, descobriu que já estava cansada das delícias encontradas em nossas pias, latas de lixo, fogões sujos, e decidiu fazer uma tournê pelas residências chiques  da nossa vizinhança, ir às ruas sassaricar suas perninhas secas pelas calçadas revestidas de pedras portuguesas, em busca de novidades pra contar às suas coleguinhas das frinchas do sofá da casa do vizinho. Mal pôs-se à rua,  quase foi esmagada pelos sapatos anabela de uma madame chiquérrima, dessas bem educadas que caminham sem fazer barulho com os sapatos e higiênica o bastante para levar o seu lixo, devidamente ensacado, e colocá-lo na coletora em frente ao edifício, para que o primeiro gari que apareça possa levá-lo para o mais longe possível.  Não conseguiu segui-la de perto, mas ainda assim procurou manter uma distância que lhe desse alguma vantagem caso pintasse outra barata na parada.  Mas ela bobeou e não notou um grupo, não de baratas, mas de humano, a meia distância da coletora, cada um na sua, fingindo que não tava nem aí. Quando a madame largou a sacola de lixo na coletora, foi o maior saque,  um empurra-empurra medonho, que a baratinha não entendeu nada.  Porém, logo-logo, sacou o lance: Um deles levou uns bifes meio estragados, outro uma lata de compota de figo mofada, um terceiro arrastou um queijo inteirinho coberto de bichos, pronto para ser devorado com vinho.  Contudo, o que mais lhe assustou foi o que aconteceu a um quarto humano.  No lusco-fusco lá entre eles, ao redor da coletora, um deles levou um tombo e quase caiu sobre a baratinha, o que só não aconteceu porque ela foi mais rápida e se livrou da infelicidade de ser esmagada por um humano, por que chegou um pouco mais para debaixo do pneu de um carro . Aí ela pôs-se a pensar e ficou baratinada, sem conseguir entender mais nada, sem conseguir arrumar  suas ideias. Será possível, perguntou aos seus botões, os humanos disputando o lixo dos latões igualzinho a nós, baratas?¹ Isso é uma injustiça! Concluiu e voltou voando pra contar essa ignomínia a todo o seu submundo. 
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domingo, 8 de março de 2015

Coisas Do Arco Da Velha * Antonio Cabral Filho - RJ

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COISAS DO ARCO DA VELHA

- Os etês gostam de bunda. Foi o que captei da conversa entre as meninas, enquanto caminhava no calçadão do Liceu.
- Tem caras que não gostam, né; acho que não são chegados; comer um cuzinho será que não faz bem?!
- Cruz credo! Exclamei mentalmente, e segui meu caminho rumo ao Fórum, que fica em frente.
Elas vieram na minha direção, a passos firmes, olhar direto, "você tem fogo...", perguntou a morena pele-de-cuia, "e como tem", observou a loira de olhos azuis, típica europeia, me examinando de cima a baixo, parando os olhos, ostensivamente, na minha barriguilha; "te vejo sempre por aqui", disse a morena, enquanto eu lhe entregava o isqueiro; "é, estou sempre na cantina, tomando café; café de Fórum é choco, frio, fraco, e causa-me asia; então, venho na cantina, às vezes comer alguma coisa", concluí.
- Uma bucetinha, um cuzinho e o que mais? Indagou a loura, acendendo o cigarro.
- Você está sempre cercado de meninas! Não é à toa!! Vai ver é o maior safadão, pica doce.... Completou a morena, sempre combinando seus ataques com a colega.

O Liceu é uma escola destinada à classe média alta, concebida nos tempos do império, onde só entravam filhinhos de papai e seus apadrinhados do aparelho de estado. Mas isso dançou com o advento da república, e hoje, assim como os "Pedro II", recebem qualquer um, desde que aguentem suas provas de avaliação, pois ainda são um padrão de ensino almejado pelas camadas interessadas em ascensão social e tecnica. Seus prédios são construções coloniais, com arquitetura rebuscada, estilosos; janelões de madeira nobre, ainda insensíveis ao cupim. Uma coisa fantástica em termos de concepção, pois possuem salas espaçosas, bem arejadas, lousas imensas, mesas de cedro vernisadas, cheias de gavetas; seus corredores lembram aqueles do filme Harry Potter, sinistros de arrepiar. E no caso do Liceu Nilo Peçanha, de Niterói, Rio de Janeiro, tem um sótão, que seguramente foi planejado como adega, pois tem balcãozinho cheio de compartimentos para copos, taças e talheres, à frente de um espelho na parede em moldura de mogno  e uma silhueta vitoriana; além de um velho barril de carvalho, aonde, sem dúvida, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Lima Barreto e tantas outras celebridades literárias desta terra de orfandades iniciaram-se nos caminhos da radicalidade estética.

- Conhece o sótão do Liceu? Indagou a morena, quase ao pé do meu ouvido.
- É ideal para uma brincadinha... Insinuou ela. Respondi que lá eu já namorei, me embriaguei, estudei e fiz muita reunião do grêmio.
- Então é "liceano... Vamos!" Disseram ambas, quase em uníssono. 
No rádio da cantina, exatamente às dez da manhã no meu Rolex, tocava uma canção, cujo trecho diz assim:" Deixa isso pra lá, vem pra cá, venha ver. Eu não tô fazendo nada, nem você também..." e seguia insinuando outras coisas, ditas pela voz de um dos meus tantos ídolos da mpb, Jair Rodrigues.

Bom, pra encurtar o lererê, a morena está aqui em casa há 32 anos. Já somos avós, e, nem os filhos nem os netos jamais saberão das nossas façanhas e quando lhe mostrei o rascunho deste texto, ela fitou-me com seu olhar fogueando e objetou: você não pôr aí os detalhes...
- Claro que não!! São nossas relíquias!
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domingo, 1 de março de 2015

História De Lurdinhas - Antonio Cabral Filho - RJ

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     Não sei por que razão a "máquina" de Tenório Cavalcante chamava-se Lurdinha. Sei, apenas, que se tratava de uma metralhadora de marca Ina e com ela ele "escreveu" sua história, cobrindo de sangue a Baixada Fluminense.

     A minha Máquina, também, chama-se Lurdinha, mas tem as "mãos limpas" e por uma razão muito justa. É que com ela eu escrevo a minha história e derramo o meu próprio sangue, só que em sentido figurado, é claro.
     É que quando cansei-me da rotatividade no mercado de trabalho, uma das primeiras coisas que fiz foi vender livro nas portas das faculdades do Rio de Janeiro. Isso rendeu-me muita amizade, uma das quais com uma estudante de geografia da Universidade Federal Fluminense - UFF, que levava sua Olivetti portátil para o campus, visando preparar seus trabalhos urgentemente e entregá-los aos professores.
     Como era cansativo carregá-la o tempo todo, ela ficava comigo no saguão do Instituto de Matemática, aonde Lurdinha e seus colegas de turmas se reuniam para preparar os trabalhos.
     O tempo passou de fininho e Lurdinha concluiu geografia, ingressou em pedagogia e a máquina foi ficando comigo. E, graças a isso, acabei "datilografo" ( a quatro dedos, é verdade), oficial da galera, o que contribuiu para gerar alguns dividendos elaborando trabalhos para muita gente.
     Sem ao menos dar por mim, o ano se passava e lá vinha outra leva de calouros com aquela festança, a cara de espanto dos novatos, os trotes, um choro aqui, um namoro ali e o ombro amigo do velho livreiro para guardar os segredinhos da meninada.
     Um dia Lurdinha chegou com um monte de livros e pôs do meu lado...
- É teu!
- Mas... Gaguejei, e, ao notar que eram seus livros de consulta, todos comprados comigo, notei que ela dobrava uma jaqueta jeans, que há um monte de meses não saía da minha cadeira.
- Vai, finalmente, dar uma lavada na pobre, né! Ironizei-a.
- Não! Estou indo para a UFMG; vou morar em frente à Pampulha; até já dei uma volta na lagoa. Adiantou ela, irradiando felicidade.
- E a faculdade? Interroguei, assustado.
- Aqui o diploma! Mostrou-o sorridente, enquanto ajustava a mochila.
     Lurdinha é clarinha, de pele rosada, tem cabelos castanhos lisos, que ela corta à chanel, o que realça seu rosto redondo; seus olhos são esverdeados e mudam de côr ao mínimo reflexo da luz, tem estatura mediana e um corpo que nós, os machos, chamamos de "miñon".
- Tá-qui a máquina! E coloquei-a ao lado a mochila, já cheia de tralhas amarradas por fora.
- Tem ficha de telefone? Viajo hoje à noite  e até lá, quero me despedir de alguns colegas. E continuou falando um monte de coisas, enquanto eu amarrava uma linha com quinze centímetros mais ou menos na única ficha que eu tinha em um palito para que ela pudesse ligar sem perder a ficha.
- P....!! É claro que ela disse uma coisa que não cabe aqui.
- Você é um guerrilheiro! 
- Que isso, companheira! Beijou-me, abraçou-me, e foi saindo com a mochila na mão.
- E a máquina?! E ela voltou-se e disse:
- Eu a trouxe pra cá para bater trabalhos meus e defender um "qualquer" com os trabalhos dos colegas, mas ela virou um "ganha-pão" pra nós dois. Eu não tenho condições de tirá-la de você. Disse isso e virou-se com sua rodadinha característica, deixando-me sentado com a máquina no colo entre as mãos.
- Não é justo que ela se chame Lurdinha?!
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domingo, 22 de fevereiro de 2015

MURMURROS - Conto Sobre Cadeia * Antonio Cabral Filho - RJ

http://consistencia.org/como-fugir-da-cadeia 
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MURMURROS

Já escutava aquele barulho há dias. Era um barulho contínuo, como o som de um trovão prolongado. Colei então o ouvido à parede em busca de melhor acuidade sonora e, só pude convencer-me de que não mudava a intensidade.

Seguramente, não eram socos nem gemidos. Não era ruído de britadeira, nem de trator. Nem motor de carro parado. Nem barulho de compressor. Passaram-se dias, sem que aquele barulho parasse ou mudasse aquela intensidade monocórdica.

Inúteis minhas perguntas ao carcereiro sobre o que havia no compartimento ao lado da minha cela. A cada interrogação feita, o carcereiro de plantão reagia de forma cada vez mais assustada, a ponto de chamar  o "pisiquiatra" do presídio, que após longa sessão de análise, comigo deitado sobre o catre que eu usava como cama, saiu profundamente deprimido com a minha situação e sem condições de emitir o seu diagnóstico.

A partir daquele momento, eu tive a leve impressão de que  estava exposto à visitação pública, tal a quantidade de pessoas que vinham observar-me atrás das grades, cada uma esboçando reações as mais estapafúrdias. Algumas se punham a escrever, outras a ouvirem uns barulhinhos vindos de umas caixinhas de música encostadas ao ouvido; outras ainda se soltavam a cantar, dançar, a tal ponto que a segurança do presídio resolveu se reunir  para encontrar uma solução. 
- Resolveram acabar com a brincadeira. Foi o que consegui captar da conversa entre dois guardas, sempre prostrados a dois metros da minha cela.

A partir daí, convenci-me de ter me tornado incomunicável,ou seja, eu passara a ser um preso de alta periculosidade, sobretudo pelos olhares a mim emitidos, fosse pelos carcereiros, guardas ou até comandantes militares, que se plantavam frente ao portão, sempre escrevendo e passando comunicados pelo rádio instalado em um jipe militar, de onde não arredavam pé.

Mas houve um dia em que não apareceu ninguém. E o carcereiro chegou assoviando, o guarda de plantão leu um jornal inteiro, e, insolitamente, deixou-o cair bem perto do portão, indo embora a seguir. 

Seco por uma notícia do mundo lá fora, como eu estava, corri o risco de ganhar uma sessão de pau-de-arara ou levar um caldo, mas arrastei-o como um gato que toma o brinquedo do outro e pus-me a examinar em que direção  o guarda tinha ido. Não o vi mais. Aliás, nunca mais. Voltei-me então para o jornal. O vento soprava tranquilamente, brincando com as folhas secas do pátio, vindas não sei de onde, uma vez que ali, no campo visual à minha frente, não haviam árvores. 

Os olhos corriam o jornal avidamente, até que esbarraram num COMUNICADO do Ministério da Defesa, avisando que o PRISIONEIRO X se encontrava
 incomunicável por tempo indeterminado, e, mais abaixo, uma nota registrando o DESAPARECIMENTO de Olinto dos Santos, 31 anos, brasileiro, casado, residente à Rua Almirante Bournier, 171, centro; "Quem o vir ou tiver notícias, favor comunicar-se com Maria dos Anjos, no referido endereço. A família agradece." Joguei o jornal de lado. Afinal,  qual a graça de fatos tão idiotas? Comunicados militares, gente desaparecida, eu hein! 

O sol já se ia batendo em retirada, e a penumbra começava o seu reinado ao longo do pátio e logo ocuparia os cantos de minha cela a fazer-me companhia até ao dia seguinte. Então, só me restaria esperar a noite chegar para eu trocar ideias com ela, o vento e as sombras, ora delgadas ora desengonçadas, como um general de reserva.

Alguns dias sem guardas, sem carcereiros mal humorados, avaliei que havia mudado a minha situação. Parecia que estavam sendo "bonzinhos" comigo. Primeiro, foi o jornal, o carcereiro descontraído, depois a suspensão do guarda no portão da cela, e agora, sobremesa no almoço, no jantar, lanche às 21 horas; eu hein!...

Mas durou pouco. Nem uma semana, e chegaram três oficiais e um guarda à porta da cela, e um deles afirmou, meio sizudo e sem ninguém lhe perguntar: É esse aí! Disse apontando para mim, visivelmente nervoso. Um outro, de olhar perscrutativo, disse"Abre!", sem tirar os olhos de mim. Os oficiais entraram na cela e o guarda ficou na porta, de metralhadora em punho, descontrolado a tal ponto que até a arma tremia. Um dos oficiais perguntou-me, em tom irônico: "X, você conhece a ante-sala do inferno?" Sem entender nada, olhei-os todos, de cima a baixo, um a um, detidamente, e lembrei-me do jornal: O "desaparecido" era eu.
- Cuidado, ele é perigoso! Gritou o guarda empunhando a metralhadora, ao que todos anuiram e foram se retirando de costas, devagarzinho. Mas o mais forte deles, meio barrigudo, branco e de bigode, disse pra mim, com a voz cheia de sulismos:
- Você está nela!! E se foram. Eu continuei ali, preso. Sem entender nada. 

Mas um silêncio de pedra tomou conta de tudo, por dias a fio. Não apareceu mais guardas, nem carcereiros, nem militares nervosos, nada. Só que deixaram o portão aberto, sem cadeado e até a corrente levaram. Porém, temendo fuzilamento por "fuga simulada", fiquei mais atento ainda. Dormia o mínimo, pelo risco de não acordar. Foi assim, até aventurar-me a abrir o portão e olhar para o lado de fora e constatar, surpreso, que eu estava largado pra trás, que o quartel fora abandonado e todos se foram...
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sábado, 21 de fevereiro de 2015

Da Arte De Torturar Crianças * Antonio Cabral Filho - RJ

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Dia desses eu atravessei a cidade, fui lá pros confins da zona oeste, na casa de um amigo, fechar uns textos que tínhamos de encaixar numas publicações. 
É que esse negócio de e-mail prá lá e-mail pra cá não funciona. 
Saltei do ônibus e lá estava ele no ponto encostado na sua Harley Davidson, de estimação. Engarupei-me e partimos pelo baixadão de Raíz da Serra. O desconforto era imenso. Não suporto andar de moto, inda mais na garupa. Ao chegar em sua casa, notei que estávamos tensos, fosse pelas responsabilidades ou pelo trajeto desagradável.
 Sem querer aporrinhar, pedi-lhe um copo d'água, e ele trouxe uma garrafa com dois copos e sentamos à mesa da sala. Ele pegou seu notebook, eu abri o meu e liguei e fomos corrigindo textos, acertando frases e períodos; plantando massetes aqui,  ali expressões jornalísticas, alguma gíria linguística, e, às vezes ríamos, porque sabemos que isso vai dar lenha; neguinho vai ter que ir ao "burronário" pra decifrar um pouco, pouco apenas, porque tudo não dá...Estamos matando à unha.
Suas crianças, três, um menino e duas meninas, se encastelaram na mesa; cada uma com seu  " ai...bolso!"; é claro que atrapalha. Ele já está irritado com elas, pois manda sair, ir para os seus quartos, para a varanda, para o quintal, mas elas repicam que "eu sou muito legal" e querem saber se eu vou contar história pra elas hoje. É tio Cabral pra lá e tio Cabral pra cá...Não tem jeito! Mas ele resolve pôr o menino de castigo; tem 4 anos, é muito esperto, "brinca" com um computador! 
Ele foi para o quarto chorando, prometendo que vai esperar para o Tio Cablal lhe contar história, o que asseguro fazer. Enquanto isso, eu e J, como vou apresentar meu colega, uma vez que se trata de gente real e não ficção, comparamos textos nossos com textos de Carlos Heitor Cony e Luiz  Fernando Veríssimo, procurando tirar uma casquinha nos papas da crônica. Mas eis que de repente começamos a ouvir uma voz tipo Mônica....mããe, a senhola qué mãe de Jesus, me adiuda, a senhola pode, é mãe de Jesuus, fala com meu pai pla eu blincar com mias ilmãs lá na valanda, diiii pla ele que noão agluento ficá pleso no esculo...vai! Eu olo pla senhola todo dia....
 Ao ouvir isso, J não aguentou e foi rápido para o quarto do menino, pegou-o nos braços e pediu desculpa, enquanto ele agradecia a Nossa Senhora dizendo " a senhola é lápida hein! Eu vou olá mais! Obligado!!" e beijou o pai, que caiu no pranto.
J, assim como eu, somos de raíz católica, temos nossos lares cheios de símbolos de nossa formação religiosa; Cristo na cruz, esculturas de igrejas barrocas, Santo Antonio, São Jorge, São Francisco de Assis e, impreterivelmente, imagens de Nossa Senhora pela casa toda. É o caso do quarto do menino dele, que ostenta um quadro da Virgem vindo de sua Avó, Dona Olinda, descendente de italianos franciscaníssimos. É aos pés Dela que ele reúne-se com esposa e filhos para orar ao fim dos seus dias. E é por isso que o pequeno P sabe se dirigir à Santa.
Mas, conclusão: Ele, como torturador, não faturaria nem um café!
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domingo, 15 de fevereiro de 2015

Fábula Orwelliana * Antonio Cabral Filho - RJ

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ANTONIO CABRAL FILHO, com o livro
ANTOLOGIA POÉTICA VOL2 UFF -
Universidade Federal Fluminense, 1996.
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Durante a minha infância, vivi na roça. E, não sei se você sabe, mas na roça há o costume de não se construir o banheiro dentro de casa, da residência, ou seja, ergue-se um cômodo a uma certa distância da casa que é apelidado de "casinha", e aí fura-se um buraco no canto, que é onde se defeca e esvazia os pinicos ao amanhecer, tomar banho e guardar aquela roupa de trabalho a ser usada no dia seguinte.

Ocorre que as crianças, geralmente, evitam a "casinha" devido à catinga e vão cagar no mato.  Como na maioria das casas criam-se porcos soltos, eles se habituam a comer as fezes humanas, e percebem, com muita perícia, aonde tem um cagão atrás da moita, dando, logo-logo, um fim à paz do coitado, que é obrigado a sair correndo para evitar a voracidade do porco por merda.

Quando o porco se satisfaz com a titica encontrada, ótimo! Mas na maioria das vezes,  o porco quer mais merda. Nesses casos, o sujeito tem de se lavar para tirar o cheiro que o identifica para o porco.

Durante a minha vida adulta tenho observado nos ambientes que frequento, seja de trabalho ou não, que as características daqueles porcos da minha infância fazem parte da personalidade de certo tipo de pessoas. Geralmente, elas trabalham em funções de controle, chefias, segurança, administração ou são essencialmente fofoqueiras, me parecem os "Indiana Jones da Bosta Perdida!" etc. E percebo, até com certa tristeza, que uma das características marcantes do ser humano, é fazer merda.
De modo que quando noto alguém em vias de cometer um "deslize" que vai provocar a gana, a "repressão" dos digamos assim "superiores", eu me apresso em abordá-lo e expor-lhe esses fatos lá da minha infância, no intuito de alertá-los para a sanha dos porcos e até já criei um lema:

NÃO DÊ MOLE PARA OS PORCOS
PORQUE ELES ADORAM MERDA!
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sábado, 14 de fevereiro de 2015

SOBRESSALTO - MiniConto* Antonio Cabral Filho - RJ

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SOBRESSALTO

- conto -

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ANTONIO CABRAL FILHO, com o livro
POETAS EN/CENA 6 - Org Rogério Salgado/Virgilene Araujo,
BELÔ POÉTICO 2012.
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Como os últimos momentos são tão iguais, que quando surgem causam sobressaltos, aquele não foi diferente.
     Eu estava com os olhos protegidos contra a poluição contextual; por isso, tive de ativar a visão para acreditar e aguçar a memória para ver o moço, tão sobressaltado quanto eu, sentado ao meu lado no coletivo, que tirava cigarros do maço, acendia-os, fumava até à metade e jogava as cinzas e as baganas no piso do carro, entre nós dois.
     Mexia-se inquieto, cruzava e descruzava braços e pernas, nas pausas entre um cigarro e outro.
     Quando restava o último, acendeu-o, cruzou as pernas e acomodou como quis o braço desocupado sobre o joelho, enquanto chamineava cinzentas baforadas de fumaça, ansioso e exausto.
     De repente, atirou o cigarro no chão, e se levantou irritado, dirigindo-se a mim:
- Quê que há meu chapa?! Por que está me prestando atenção?! 
     Como os últimos momentos são tão iguais que quando surgem causam sobressaltos, fiquei sobressaltado e disse-lhe que finalmente arrancara uma palavra de alguém, pois uma troca de ideias hoje em dia, é coisa de paranóico mesmo. 
     Em seguida, nós dois, sobressaltados um com o outro, saltamos do ônibus e sumimos, correndo em direções contrárias.

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