Devaneios de Dom Pedro
- Conto -
Devaneios de Dom Pedro
Ele passeia na cidade como o peixe
dentro d’água ou a onça na floresta. Ou como a dona no jardim conversando com
as berduéguas. Jamais como o sabiá ou o moleque traquinas no pomar: ele não
mercantiliza a cidade. Ela é como seu refúgio, sua varanda, onde ele chega pra
se jogar no repouso.
- Mas que cara chato!
Espragueja o camelô, incomodado com ele
por estar na frente da sua barraca.
- Moço, deixa o freguês chegar!
Mas ele segue alheio, passos lentos,
olhar perdido na paisagem. Só lhe interessam os detalhes do casario da cidade
velha, as janelas barrocas, a arquitetura rebuscada, os anjinhos de pernas
grossas...
(“Menina bonita,
Da perna grossa,
Vestido curto
Papai não gosta.”)
trazem à memória as canções infantis
cheias de malícias. Pensa nas igrejas, cheias de gente nua pelas paredes,
corpos cheios de vida simbolizando santos, cenas de harmonia, de paz, de
felicidade... onde o pecado (?), como acusar alguém pelas tentações da carne
com as igrejas lotadas de provocações (?), e a pedofilia...
O comerciante da sapataria se pergunta o
que aquele sujeito tanto olha nos prédios, o que será que ele procura e resolve
interceptá-lo, joga água na calçada, exatamente aonde ele gosta de parar, bem
no meio da porta de sua loja, que já é estreita e ainda aparece um estrupício
desses pra ficar ali plantado. Mas ele não liga. Pode chover pedra, que só lhe
bastam os adornos do casario rico em história da arquitetura, da dominação
colonial, da escravidão, das casas grandes cheias de escravas para os senhores
abusarem e encher este país de mestiços bastardos, filhos dos estupros, e a
título de miscigenação, pregar o surgimento de uma nova raça, a “raça
brasileira!”...
Quando se aproxima de um prédio novo,
com desenho atual, ouve-se apenas:
- Caixote!
O jornaleiro da banca em frente à
Biblioteca Nacional chama-o de Dom Pedro e lhe oferece um noticioso
sensacionalista, cheio de corpos retalhados, braços e pernas espalhados na
página, mas se ouve:
- Mêrda!
Aí ele pára. Roda nos calcanhares para
todos os lados, arruma sua calça de linho preta na cintura, devidamente
vincada, abotoa a camisa de linho branco melhor e passeia a mão direita nos
cabelos, louros e compridos presos por um elástico em rabo-de-cavalo, como um
badboy Robin Hood, depois se detém, olhando as revistas penduradas nas grades
da banca. Não diz nada nem pergunta coisa alguma, como se tudo lhe fosse
familiar. Mas o jornaleiro procura ferir a sua rotina e lhe franqueia a leitura
do que quiser e o instiga:
- Pode ler. Faz bem.
-
“Maze quein tá male!?”
- Opa! Surpreende-se o jornaleiro, que
anuncia, gritando:
- Consegui reanimar o moribundo.
Suspende o velório! Zomba o caboclinho da banca de jornais.
Dom Pedro se retira. Vai embora
arrastando sua alpercata de couro curtido, há muito pedindo aposentadoria.
Atravessou a Rio Branco e parou na porta do Museu Nacional de Belas Artes.
Enfiou a mão no bolso direito traseiro e retirou um livro preto, que abriu e
pôs-se a folheá-lo. Parecia estar lendo alguma coisa, mas de repente pôs-se a
examinar um anjo dentro de uma moldura na parede do museu. Olhava para o anjo e
para uma foto no livro; repetia essa atitude várias vezes em seguida, como se
quisesse se certificar de alguma coisa, ou curiosidade, ou detalhe etc, e
enquanto o fazia um sujeito branco, alto, porte atlético, saltou de um carro
preto parado bem atrás dele. Foi direto a Dom Pedro e
disse-lhe ao ouvido:
- Quer aquele Portinari extraviado há
anos?
Dom Pedro não se alterou, não piscou
mais rápido nem mais devagar, continuou examinando detalhes da foto no livro
preto e do anjo na parede do museu.
- Uma conta para depósito. Sabéres aonde
entregar...
Rapidamente um cartão social virou
marcador no meio do livro preto e o homem se foi.
Daí, Dom Pedro se dirigiu ao Teatro
Municipal, ainda com o livro preto nas mãos, sempre examinando fotos e detalhes
nas paredes ao seu redor, como se comparasse uma coisa com a outra. Um mendigo
magro, alto, mulato, lhe pediu um trocado para comer e foi convidado para
lanchar no Amarelinho, enquanto Dom Pedro tomava um caubói.
- Por que lhe chamam de Dom Pedro?
Perguntou o mendigo.
- Io paresco Dom Pietro? Interrogou o
Dom Pedro, mas o mendigo se limitou a menear a cabeça negativamente, uma vez
que o sanduíche da carne assada o impedia de falar. Com um gesto de mão, o
garçon trouxe a conta e recebeu uma nota de cem reais, sendo informado de que o
troco era pra ser dividido meio a meio com o mendigo e saiu, sendo acompanhado
por dois homens altos, também de portes atléticos, rumo a uma limousine parada
quase na porta da Câmara Municipal. Um abriu a porta, o outro ajudou-o a sentar-se
confortavelmente; ambos entraram na frente e partiram.
- O que você sabe sobre esse velho aí?
Perguntou o garçon ao mendigo.
- Qui... É o Dom Pedro. Milionário
senil, maluco por cidades velhas, leitor maníaco de Rubem Fonseca! Não viu o
livro na mão dele?
Finalizou.
*